Entre pinturas corporais, cantos ancestrais e saberes originários, evento na aldeia Mata Verde Bonita proporciona experiência imersiva que conecta diferentes mundos
A manhã de sábado (19/04) amanheceu diferente em São José do Imbassaí. No coração da aldeia Mata Verde Bonita (Tekoa Ka’aguy Hovy Porã), o ar carregava não apenas a umidade típica da região, mas também o peso da história e a leveza das tradições sendo compartilhadas. Foi ali que aconteceu o “Maricá Indígena”, uma iniciativa da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de Maricá que transformou a data em um portal para outro modo de ver o mundo.
Ao chegar na aldeia, os visitantes foram recebidos com sorrisos abertos e olhares curiosos de ambos os lados. Crianças guaranis corriam entre adultos não-indígenas, criando uma atmosfera de descoberta mútua que permeou todo o evento. O cheiro da comida típica preparada em fogões improvisados se misturava ao aroma da mata ao redor, enquanto os sons dos mbarakás (chocalhos sagrados) começavam a ecoar, anunciando o início das atividades.
Experiências que atravessam fronteiras
“Toquei no arco pela primeira vez na vida e senti algo que não consigo explicar direito… uma conexão com algo muito maior e mais antigo que eu”, contou Sandra Oliveira, professora de história que viajou de Niterói especialmente para o evento. Ela foi uma das dezenas de pessoas que se aventuraram nas atividades práticas oferecidas pelos anfitriões indígenas.
O dia foi recheado de vivências que ultrapassaram o simples “conhecer”: participantes suaram no cabo de guerra, concentraram-se nas demonstrações de arco e flecha, e se entregaram à corrida com mbaraká – um esporte tradicional onde os competidores correm carregando o instrumento sagrado. Entre uma atividade e outra, rodas de conversa surgiam espontaneamente, permitindo trocas genuínas entre mundos frequentemente separados pela incompreensão.
“Hoje foi um dia especial. Recebemos muitas pessoas de fora, não indígenas, e isso é importante porque elas precisam conhecer e entender a cultura Guarani e de outros povos também. É preciso conversar diretamente com os indígenas e viver essa troca”, compartilhou Miguel Wera, uma das lideranças da aldeia, enquanto ajustava o cocar tradicional após guiar um grupo de visitantes pela trilha que corta a aldeia.
Mais que folclore: memória viva
Um silêncio respeitoso tomou conta do espaço quando o coral guarani se posicionou para sua apresentação. Vozes que carregavam séculos de ancestralidade preencheram o ar, provocando arrepios em muitos dos presentes. Os cantos, em língua guarani, falavam de conexão com a terra, com os antepassados e com o sagrado – temas que, apesar da barreira linguística, tocaram fundo nos corações de todos os presentes.
Para Martinha Mendonça, indígena do povo Guajajara e diretora da Escola Municipal Indígena Guarani Para Poty Nhe E Já, momentos como esse são essenciais para desmistificar a cultura indígena.
“A ressignificação dessa data é um marco importante na nossa história, pois já vínhamos, enquanto movimento indígena, tirando-a do lugar folclórico e simbólico para afirmar nossa resistência e presença em todos os campos: saúde, educação, espiritualidade e cultura. Nossas histórias não são folclore, são memórias vivas, formas de viver, ensinar, cuidar e existir. Por isso é tão importante que os territórios indígenas organizem momentos de vivência com a população não indígena”, explicou Martinha, enquanto orientava algumas crianças durante uma aula aberta de língua guarani.
Entre datas e significados
O evento “Maricá Indígena” celebrou duas datas significativas no calendário: o Dia dos Povos Indígenas (19/04), reconhecido nacionalmente, e o Dia Municipal dos Povos Indígenas (22/04), instituído pela própria Prefeitura de Maricá através da lei nº 3.196/2022.
Esta última data foi estrategicamente escolhida para coincidir com o dia em que se comemora oficialmente a “descoberta” do Brasil, propondo assim uma contra-narrativa que reconhece que estas terras já eram habitadas muito antes da chegada dos colonizadores europeus.
“Momentos como esse de celebração e, principalmente, de respeito, são oportunidades para valorizar a resistência dos povos originários. Essa integração com a sociedade é fundamental para fortalecer memórias e compartilhar saberes”, refletiu Leonardo Lopes, morador de Itaipuaçu que participou do evento com seus dois filhos pequenos.
Raízes maricaenses
Poucos visitantes sabiam que Maricá abriga não apenas uma, mas duas aldeias indígenas em seu território: a Mata Verde Bonita (Tekoa Ka’aguy Hovy Porã), em São José do Imbassaí, anfitriã do evento, e a Céu Azul (Tekoa Ara Hovy), localizada no Espraiado.
Durante o evento, uma exposição fotográfica narrava visualmente o cotidiano dessas comunidades que, apesar da proximidade com áreas urbanas, mantêm vivas suas tradições, língua e modo de vida. As fotografias, muitas delas feitas pelos próprios indígenas, revelavam detalhes do dia a dia que normalmente escapam aos olhares externos: o preparo de alimentos tradicionais, o cuidado com as crianças, as práticas espirituais e o artesanato como expressão cultural e fonte de renda.
No final da tarde, enquanto o sol começava a se pôr, visitantes deixavam a aldeia carregando mais que artesanatos adquiridos nas barracas montadas para o evento. Levavam consigo novas perspectivas, questionamentos sobre a história oficial e, principalmente, a experiência viva de um encontro genuíno com os guardiões originais destas terras.
“Volto para casa diferente de como cheguei,” confidenciou uma senhora ao se despedir de uma das artesãs indígenas após adquirir um colar de sementes. “E isso, no fim das contas, é o verdadeiro propósito deste dia.”
Texto jornalístico com informações da Prefeitura de Maricá